Mínimos para uma autópsia do futuro


  • 37

    A morte é um despertar, concluiu o príncipe André quando acordou ao perceber que sonhava que morria. Mais do que escapar ao mau génio de Sofia, também ele talvez só procurasse, naquela noite gelada a bordo de um comboio, a derradeira revelação. A pneumonia, lamentavelmente, foi fulminante e não lhe permitiu retirar grandes conclusões. E o generoso jardim que lhe rodeava o leito de morte também não deve ter ajudado muito. Parece que à noite as flores não facilitam a respiração.

  • 36

    O Amor de Fedra

    o nó dos atacadores
    aconchegado à roda
    do pescoço é o
    coreógrafo da
    dança que se
    dança nos
    três minutos
    que restam

  • 35

    É surpreendente a semelhança entre a intoxicação por ingestão de cianeto e a revolução. Em poucos minutos, o bloqueio do transporte de oxigénio pela circulação sanguínea provoca o colapso dos diversos sistemas que mantêm o organismo vivo e funcional. Foi nesse acto súbito e simultâneo que Laura e Paul descobriram a libertação das forças produtivas do desejo contra as insuficiências do corpo.

  • 34

    Enquanto Ana Augusta acompanhava o doutor Magalhães à porta, não o impediu a cegueira de rebentar a cabeça com um tiro de revólver. Juntou o agradável ao útil. Por um lado, pôs fim aos inenarráveis padecimentos que se vão complicando todos os dias. Por outro, apanhou o embalo da cadeira de baloiço para navegar pela invisibilidade da memória e, por interposta Yvonne, anunciar o abandono do mundo.

  • 33

    Keith, trinta e dois anos, enfiou a filosofia da história num frasquinho de clometiazol e foi explodir no mesmo quarto onde, quatro anos antes, o coração de Cass, trinta e dois anos, parara para contemplar o seu mar de ruínas. Deve ser a isto que chamam a astúcia da razão.

  • 32

    Não foi o primeiro tiro suficiente, boca adentro, à sombra da Esperança, nem o segundo, boca adentro, à sombra da Esperança. Nem lhe sobraram forças para o terceiro, à sombra da Esperança e do clamoroso mar. Só mais tarde, longe da Esperança e do clamoroso mar, pôde escutar o silencioso intérprete sagrado das cousas invisíveis, e tendo seu fim, teve seu começo. As ilhas não choram.

  • 31

    O tempo é sempre ameno em Turim. Até mesmo nos quartos de hotel onde o amor e os barbitúricos revelam a nudez e a miséria de cada qual. Veio a morte, tinha os olhos que devia ter, mas ele já não os viu. Terá chegado a pagar o aluguer do quarto?

  • 30

    Simone, se para isso lhe sobrassem forças, teria retirado os óculos para morrer de fome, da explosão dos pulmões, da experiência da comunhão com o sofrimento dos oprimidos e dos soldados na frente de batalha. Olhos que não vêem, coração que não sente. Simone morreu para se libertar do insuportável peso da culpa.

  • 29

    Disse Romeu, What light through yonder window breaks
    Disse Hank, No more darkness, no more night
    Disse Romeu, Arise, fair sun, and kill the envious moon
    Disse Hank, Now I’m so happy, no sorrow in sight
    Disse Romeu, It is my lady, O, it is my love
    Disse Hank, Praise the Lord, I saw the light

  • 28

    Levou mais de cinquenta e cinco anos, Emily, a aprender a parar de respirar aquela terrível respiração. Escutou o zumbido da mosca um pouco antes das seis da tarde.
    The Stillness in the Room
    Was like the Stillness in the Air –

Design a site like this with WordPress.com
Get started